quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A Demanda




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O Herói chegou à entrada da Caverna Sombria, onde a nota deixada pelo raptor dizia que se encontrava a sua Princesa. Quem será o tolo, pensou o Herói, que se atreve ainda a desafiar-me? Os meus feitos são conhecidos por todos os reinos do Ocidente, os meus triunfos cantados por todos os trovadores e bardos do mundo… O Herói riu-se. Este apenas seria mais um para ser lembrado, para se juntar a já uma grande lista. Nada demais.
Entrou, e surpreendeu-se quando tochas que ladeavam o caminho a tomar acenderam-se por magia. Será um feiticeiro? O Herói indagou. Talvez esta demanda seria um desafio maior do que pensava… já sentia a falta disso.
Percorreu o corredor frio e húmido, ouvindo gotas de água a ecoarem pelas paredes. Depois ouviu um resfolegar. Algo grande e vivo encontrava-se adiante… Aproximou-se da entrada da câmara de onde vinha o som. Espreitou e viu uma enorme mancha vermelha numa das paredes. A mancha mexeu-se. O Herói empunhou a sua espada e o escudo preparando-se para a batalha. A coisa deu pela presença dele e virou-se. Era um enorme dragão com chifres, que estava repousado numa abertura da câmara. Um Dragão Escarlate? Pensou. Há décadas que não se via nenhum… Isto vai ser um troféu e tanto. Pôs-se em posição de combate, um esgar a rasgar-lhe a cara. A criatura no entanto não se moveu, apenas olhava para ele, a avaliá-lo.
“Ataca-me monstro!” o Herói gritou em desafio. O dragão apenas olhou para a entrada do outro lado da câmara, como que indicando o caminho que o Herói devia seguir, voltando a repousar.
O Herói sentiu-se provocado e lançou-se ao dragão com um grito de raiva. Este chicoteou a cauda, atirando o Herói contra a parede.
“Ngh… Agora já falamos a sério” gemeu o Herói, agarrado ao peito. Voltou a investir. O dragão lançou um rugido de aviso que ecoou na câmara e fê-la tremer violentamente. O Héroi ignorou e continuou a investida, dando uma estocada com a espada no peito do dragão. Este desviou-se novamente e lançou uma labareda de chamas ao Herói. Rapidamente o Herói ergueu o escudo e protegeu-se da bola de fogo. O escudo não aguentou a força e o calor daquele ataque, e derreteu-se na mão do dele. Com um grunhido frustrado, o Héroi atirou o escudo ainda a fumegar para o lado, mesmo a tempo de se desviar de outra investida do dragão, desta vez usando os seus chifres. Ainda sentiu os enormes chifres negros a rasparem na sua armadura, antes de se espetarem no chão lançando entulho para todo o lado. O monstro rugiu furioso, enquanto tentava arrancar os chifres do solo.
“Não és muito inteligente, pois não?” disse o Herói triunfantemente, levantando a espada para decapitar o monstro. No entanto este libertou-se e cabeceou o Herói, fazendo-o rebolar pelo chão. Cambaleou e levantou-se, deparando-se com um corte enorme corte no braço que perfurava a armadura.
“Subestimei-te…” dizia o Herói quando reparou em algo. O dragão em todos os seus ataques não tinha saído de frente da abertura onde estava no princípio. Nem sequer se afastava dela. “Então? Estou ferido! Sou um alvo fácil!” mas o dragão não se mexeu. Apenas o olhava a arfar. “VÁ LÁ!” Quando olhou por entre as patas e viu três ovos do tamanho de abóboras em cima de uma cama de palhas. No momento concebeu um plano para ganhar vantagem. Virou costas ao dragão, seguro de que não seria atacado, e dirigiu-se a uma das entradas. O dragão fungou vitoriosamente preparando-se para voltar a cobrir a sua ninhada. De repente, algo laranja e quente aterrara no ninho, ateando-lhe fogo. Era uma tocha. O dragão rugiu de raiva olhando ora para o Herói que sorria sadicamente, ora para os ovos, sem saber o que fazer. Decidiu-se em atacar o Herói com os chifres, com os olhos a chisparem de vingança. O Herói aproveitou o descontrolo do monstro e saltou de espada em riste, enquanto este ficava preso no chão novamente. Com um golpe decapitou a criatura, cujo corpo caiu para o lado ainda a espernear. O Herói suspirou de alívio e aproximou-se da cabeça. Pôs-se de cócoras para a analisar. Vais para o Grande Hall pensou friamente. Olhou para a direcção do ninho e viu que naquela comoção, um dos ovos rolara para fora. O Herói ergueu o sobrolho.
“Ora o que temos aqui?” disse, enquanto se aproximava. “Isto vai dar bom ouro. Mas mais tarde” concluiu sorrindo. Então virou-se para a saída da câmara e prosseguiu com a sua missão.
Após alguns minutos a percorrer outro túnel, deparou-se com escadas cravadas na rocha. Olhou para cima e viu que iam dar a um acesso no tecto. Subiu-as rapidamente, sempre de espada em riste. O que viu não foi o que ele estava à espera. Era um quarto… com uma cama com lençóis de cetim, um tapete que cobria o chão com o desenho do Selo Real, e uma enorme janela que iluminava toda a divisão. Em frente da janela estava uma figura, bela e feminina. Ela aproximou-se, deixando revelar a sua face.
“Princesa?” perguntou o Herói, chocado.
“Estavas à espera de me ver fechada numa gaiola? Guardada por alguma criatura terrível? Lamento desapontar-te, é só eu…” disse ela, num tom sarcástico.
“Não compreendo…”
“Não desconfiaste da nota deixada a anunciar o meu rapto? Será que a tua arrogância toldou o teu discernimento, ou simplesmente esqueceste-te da minha escrita?”
O Herói sentiu a mente entorpecida. Fez então a primeira questão em que conseguiu pensar: “Que sítio é este?”
“O meu retiro, se te tivesses importado de o saber antes”
“Qual o objectivo desta charada, mulher?” disse o Herói, sentindo-se a ferver.
“Quero dar-te uma lição. E também deixar-te uma mensagem.” O semblante endurecido da Princesa suavizou, tomando uma expressão de triste nostalgia. “Ainda me lembro… quando te vi pela primeira vez. Um jovem camponês que apenas queria fazer a diferença, que se elevou à altura da situação e salvou o nosso Reino de um Mal terrível. Um cavaleiro galante… o homem por quem me apaixonei. Eu fui o teu prémio, e estive feliz por o ser. Sentia-me… orgulhosa de ti. Orgulhosa de ser tua. No entanto, toda a tua glória tomou conta do teu ser, e corrompeu-te.” Ela dirigiu-se à cama, e sentou-se nela. O Herói seguiu-a com os olhos. “Tornaste-te outra pessoa, outro homem. Com sede de poder e fama. Cruel. Usaste o medo para espalhar o teu nome. Exigiste respeito do Povo e tiveste-o, mas nunca tiveste a sua admiração. Entretanto, enquanto te revelavas nas tuas conquistas, o meu coração morria lentamente. Vinha muitas vezes para este sítio, para me afastar de ti, para me esconder de ti. Mas tu nem reparavas, pois não? Tu tinhas substitutas para mim…” O Herói podia jurar que a Princesa vertia uma lágrima. Ele nunca a tinha visto a chorar…
“Para poder ter alguma paz de espírito, e porque ainda te amo, decidi mostrar-te no que te tornaste. Trouxe-te aqui…”
“Tu atiçaste aquela criatura contra mim?!” interrompeu o Herói brutamente. Ele sentia-se enganado, traído. A Princesa deu uma gargalhada melancólica.
“Eu aticei? Tu é que na tua ganância e sede de sangue atacaste uma criatura sem ser provocado, e chacinaste-a selvaticamente. E aos seus descendentes. Era a minha guardiã, e a minha única amiga neste tempo todo. A última da sua espécie. “

O Herói sentiu um enorme buraco dentro dele. Última da sua espécie? “Como sabes isso tudo? Não estavas lá…” indagou o Herói.
“Mas vi-o” ela apontou a uma bacia de metal em cima de uma cómoda “E previ-o também. Não que eu tenha dons divinatórios, apenas conheço-te.” A Princesa olhou o Herói nos olhos, um olhar tão intenso e acusador que ele não aguentou, e desviou o olhar.
A Princesa levantou-se e aproximou-se do seu amado. “E agora despeço-me de ti” beijando-lhe a face “no entanto há muito que sinto a tua falta”. E saiu, para nunca mais ele a ver.
O Herói sentiu as pernas enfraquecer, e a espada pesada. Ajoelhou-se. Preferia ter sido devorado por algum monstro horrível, ser trespassado pela lâmina de algum oponente, mas não aquilo. Ela era a razão pela qual ele tinha feito o que tinha feito, tornado no que se tornou, e agora perdera-a para sempre. Deu-a como garantida. Então o Herói, desprovido de tal título, chorou.